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sexta-feira, 15 de julho de 2011

do bloquinho

[Direto do bloquinho: numa abafada manhã de março, às 5h17, enquanto o metrô não chega, uma mulher varre cabelos e papéis de bala do chão da Estação Sumaré no silêncio da madrugada]

Eu, que limpo a sujeira do mundo, sei bem como é isso [a invisibilidade]. Mas penso que, se não veem a sujeira do mundo é porque, de algum modo, então sou vista.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

N

Não posso dormir. Não posso dormir. Não posso dormir. Não posso dormir. Não posso dormir. Não posso dormir. Não posso dormir. Onde mesmo que eu li que se repetir a mesma coisa sete vezes o cérebro entende como verdade? Jornal! Isso, lê o jornal e distrai o sono. Professores em greve, ok. Tô sabendo. Frio, ok. Tô sentindo. Duas popozudas brigaram na internet? Hm, interessante. Seleção decepcionou, ok. Também acho. Esse Neymar não me engana e Ganso e Pato lá na frente só dá pena mesmo. Palavra cruzada. Dez, em inglês. Três letras. Três letras. Três letras. Opa! Passageira! Tira o jornal de cima pra poder pegar o troco, seu tanso. Cinco menos dois e noventa, um e dez. Três letras. Mas que inferno! Dez, em inglês... três letras. Foda-se a palavra cruzada. Olha só ó, promoção de carne. Dezoito e noventa o quilo, não tá caro. Não tá barato, mas não tá caro. Tá bom pro churrasco da turma depois do futebol de amanhã. Quem será que vai comprar a carne?
(acelera e freia, acelera e freia, acelera e freia, acelera e freia)
Não posso dormir. Não posso dormir. Não posso dormir. Não posso dormir. Não posso dorm....................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
[Ô Marcos, sente só o cobrador pescando ali. Se eu começo a pescar no trabalho, já viu né?]
piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Parada, parada. Alguém vai descer. Acorda, porra. Jornal, jornal. É só reler. Porra, dois meses de greve já??? E esse governador hein? Sou bem mais as popozudas. Como é que tem gente que ganha tanto dinheiro assim balançando a bunda por aí hein? Fico de cara. Figueira e Avaí? Quero só ver o Miguel hoje à noite na Ressacada, nesse frio da porra, pra ver o Avaí perder de novo. Grito de dor. Duas letras. Ai! Dez, em inglês. Três letras. Três letras. Vogais de “mole”. Oe. Dez, em inglês. Duas letras e o ‘e’ no meio. Ton (símbolo). T. Dez, em inglês. Três letras. Começa com ‘t’, tem ‘e’ no meio.

terça-feira, 5 de julho de 2011

De repente

Entrou no ônibus com o pé direito. Não por superstição, por hábito. A perna direita é mais acostumada ao alto degrau do que a esquerda. Por hábito, deu bom dia ao motorista. Ele bem sabia que o primeiro hábito era mais comum que o segundo, mas isso nunca o incomodou. Ele costumava dizer que são hábitos desse tipo, do segundo, que resgatavam sua fé na humanidade.

Sacou a carteira do bolso da calça, escolheu as notas e, enquanto esperava o troco, olhou ao redor em busca de um assento livre. Caminhou em direção ao único disponível, pediu licença e sentou-se. Nunca soube muito bem definir quais eram os limites entre os assentos vizinhos e, por conta própria, definira uma regra onde ficava proibido que vizinhos encostassem pernas ou braços. Assim, sempre criava uma barreira imaginária e compensava as curvas nas pontas dos pés, para não quebrar a sua própria regra.

Absorto em pensamentos viu-se invadido por um aroma doce que contrastava com todos aqueles odores impregnados nos bancos encardidos do coletivo. Simulou uma fungada para sentir melhor o cheiro e percebeu que era da vizinha, de quem estava separado pela barreira imaginária que só ele enxergava.

Aproveitou a parada do ônibus para analisar a moça ao lado. Já não era mais tão calor, mas ela usava uma saia que deixava seus joelhos desnudos. Já não era mais moda, mas ela usava várias pulseiras no braço esquerdo. Levou tempo para decifrar a cor azul do esmalte das mãos que seguravam um livro. Esticou o olho para ver o que ela lia: Antologia poética – Vinícius de Moraes. ‘Mas quem diabos ainda lê poesia?’, pensou.

Antes o cheiro, agora ela por inteiro. Ele estava fascinado. No assento ao lado, uma incógnita. As pontas dos pés, que antes contrabalançavam para manter a regra, agora estavam relaxadas. Na primeira curva, suas pernas se tocaram. Ele prendeu a respiração e esperou uma reação dela. Nada; o poetinha a prendia. Ele suspirou. Àquela altura a regra já não cabia mais. De repente, não mais que de repente, cada curva da estrada servia de pretexto para que ele explorasse as curvas dela.